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terça-feira, 1 de novembro de 2011

Judas Escariotes - Por Humberto de Campos



Silêncio augusto caisobre a Cidade Santa. A antiga capital da Judéia parece dormir o seu sono demuitos séculos. Além descansa Getsêmani, onde o Divino Mestre chorou numa longanoite de agonia, acolá está o Gólgota sagrado e em cada coisa silenciosa há umtraço da Paixão que as épocas guardarão para sempre. E, em meio de todo ocenário, como um veio cristalino de lágrimas, passa o Jordão silencioso, comose as suas águas mudas, buscando o Mar Morto, quisessem esconder das coisastumultuosas dos homens os segredos insondáveis do Nazareno.

Foi assim, numadestas noites que vi Jerusalém, vivendo a sua eternidade de maldições.

Os espíritos podemvibrar em contacto direto com a história. Buscando uma relação íntima com acidade dos profetas, procurava observar o passado vivo dos Lugares Santos.Parece que as mãos iconoclastas de Tito por ali passaram como executoras de umdecreto irrevogável. Por toda a parte ainda persiste um sopro de destruição edesgraça. Legiões de duendes, embuçados nas suas vestimentas antigas, percorremas ruínas sagradas e no meio das fatalidades que pesam sobre o empório mortodos judeus, não ouvem os homens os gemidos da humanidade invisível.
Nas margens caladas do Jordão, não longe talvez do lugar sagrado, ondePrecursor batizou Jesus Cristo, divisei um homem sentado sobre uma pedra. Desua expressão fisionômica irradiava-se uma simpatia cativante.

- Sabe quem é este? –murmurou alguém aos meus ouvidos. – Este é Judas.

- Judas?!...

- Sim. Os espíritosapreciam, às vezes, não obstante o progresso que já alcançaram, volver atrás,visitando os sítios onde se engrandeceram ou prevaricaram, sentindo-semomentaneamente transportados aos tempos idos. Então mergulham o pensamento nopassado, regressando ao presente, dispostos ao heroísmo necessário do futuro.Judas costuma vir à Terra, nos dias em que se comemora a Paixão de NossoSenhor, meditando nos seus atos de antanho...

Aquela figura dehomem magnetizava-me. Eu não estou ainda livre da curiosidade do repórter, masentre as minhas maldades de pecador e a perfeição de Judas existia um abismo. Omeu atrevimento, porém, e a santa humildade de seu coração, ligaram-se para queeu o atravessasse, procurando ouvi-lo.

-O senhor é, de fato,o ex-filho de Iscariot?

– Sim, sou Judas –respondeu aquele homem triste, enxugando uma lágrima nas dobras de sua longatúnica. Como o Jeremias, das Lamentações, contemplo às vezes esta Jerusalémarruinada, meditando no juízo dos homens transitórios...

- É uma verdade tudoquanto reza o Novo Testamento com respeito à sua personalidade na tragédia dacondenação de Jesus?

- Em parte... Osescribas que redigiram os evangelhos não atenderam às circunstâncias e àstricas políticas que acima dos meus atos predominaram na nefanda crucificação.Pôncio Pilatos e o tetrarca da Galiléia, além dos seus interesses individuaisna questão, tinham ainda a seu cargo salvaguardar os interesses do Estadoromano, empenhado em satisfazer as aspirações religiosas dos anciãos judeus.Sempre a mesma história. O Sanedrim desejava o reino do céu pelejando porJeová, a ferro e fogo; Roma queria o reino da Terra. Jesus estava entre essasforças antagônicas com a sua pureza imaculada. Ora, eu era um dos apaixonadospelas idéias socialistas do Mestre, porém o meu excessivo zelo pela doutrina mefez sacrificar o seu fundador. Acima dos corações, eu via a política, únicaarma com a qual poderia triunfar e Jesus não obteria nenhuma vitória. Com assuas teorias nunca poderia conquistar as rédeas do poder já que, no seu mantode pobre, se sentia possuído de um santo horror à propriedade. Planejei entãouma revolta surda como se projeta hoje em dia na Terra a queda de um chefe deEstado. O Mestre passaria a um plano secundário e eu arranjaria colaboradorespara uma obra vasta e enérgica como a que fez mais tarde Constantino Primeiro,o Grande, depois de vencer Maxêncio às portas de Roma, o que aliás apenasserviu para desvirtuar o Cristianismo. Entregando, pois, o Mestre, a Caifás,não julguei que as coisas atingissem um fim tão lamentável e, ralado de remorsos,presumi que o suicídio era a única maneira de me redimir aos seus olhos.

- E chegou asalvar-se pelo arrependimento?

- Não. Não consegui.O remorso é uma força preliminar para os trabalhos reparadores. Depois da minhamorte trágica submergi-me em séculos de sofrimento expiatório da minha falta.Sofri horrores nas perseguições infligidas em Roma aos adeptos da doutrina deJesus e as minhas provas culminaram em uma fogueira inquisitorial, ondeimitando o Mestre, fui traído, vendido e usurpado. Vítima da felonia e datraição deixei na Terra os derradeiros resquícios do meu crime, na Europa doséculo XV. Desde esse dia, em que me entreguei por amor do Cristo a todos ostormentos e infâmias que me aviltavam, com resignação e piedade pelos meusverdugos, fechei o ciclo das minhas dolorosas reencarnações na Terra, sentidona fronte o ósculo de perdão da minha própria consciência...

- E está hojemeditando nos dias que se foram... - pensei com tristeza.

- Sim... Estourecapitulando os fatos como se passaram. E agora, irmanado com Ele, que se achano seu luminoso Reino das Alturas que ainda não é deste mundo, sinto nestasestradas o sinal de seus divinos passos. Vejo-O ainda na Cruz entregando a Deuso seu destino... Sinto a clamorosa injustiça dos companheiros que O abandonaraminteiramente e me vem uma recordação carinhosa das poucas mulheres que Oampararam no doloroso transe... Em todas as homenagens a Ele prestadas, eu sousempre a figura repugnante do traidor... Olhocomplacentemente os que me acusam sem refletir se podem atirar a primeira pedra...Sobre o meu nome pesa a maldição milenária, como sobre estes sítios cheios demiséria e de infortúnio. Pessoalmente, porém, estou saciado de justiça, porquejá fui absolvido pela minha consciência no tribunal dos suplícios redentores.

Quanto ao Divino Mestre –continuou Judas com os seus prantos – infinita é a sua misericórdia e não sópara comigo, porque se recebi trinta moedas, vendendo-O aos seus algozes, hámuitos séculos Ele está sendo criminosamente vendido no mundo a grosso e aretalho, por todos os preços em todos os padrões do ouro amoedado...

- É verdade – concluí– e os novos negociadores do Cristo não se enforcam depois de vendê-Lo.

Judas afastou-setomando a direção do Santo Sepulcro e eu, confundido nas sombras invisíveispara o mundo, vi que no céu brilhavam algumas estrelas sobre as nuvenspardacentas e tristes, enquanto o Jordão rolava na sua quietude como um lençolde águas mortas, procurando um mar morto.

Recebida em Pedro Leopoldo a 19 de abril de 1935 - Do livro Crônico deAlém Túmulo. Psicografia de Francisco Cândido Xavier.

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